Tuesday, January 23, 2007

DA IMPORTÂNCIA DAS CLÁUSULAS GERAIS DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ANTE AS RUPTURAS SEMÂNTICAS NOS CONCEITOS DE FAMÍLIA E PROPRIEDADE

Neimar Roberto de Souza e Silva


Sumário: 1. O direito como instrumento de elaboração constante. 2. Rupturas semânticas nos conceitos de família e propriedade. 3. A constitucionalização do direito civil e a importância das cláusulas gerais para a dinâmica social. 4. Considerações finais. 5. Referências bibliográficas


1. O Direito como um instrumento de elaboração constante;

Um dos aspectos mais apaixonantes da ‘vida do direito’ é a incerteza. E, por mais incongruente que aqui nos possa parecer a relação acima firmada, não é despropósito algum dizer que desta assertiva ressona um breve tom de verdade.

A incerteza é fiel companheira do operador do direito. E não é por menos: tomando como exemplo a nossa própria realidade, sentimo-nos, por vezes, náufragos neste mar de casuísmos, que é nosso Ordenamento Jurídico. Torrentes de furor legiferante deságuam de Brasília sempre que um fato comum transforma-se em social por força dos estrondos da mídia.

Assim, não é difícil que nos sintamos meio inseguros e desatualizados quanto à escolha da melhor norma a ser aplicada nos casos concretos. Decerto, qualquer vaidoso jurista tem o seu ego ‘mortificado’ frente às constelações de valores, princípios e normas, assim como nos acontece quando nos deparamos, numa noite estrelada, com a imensidão do cosmos.

Redundante, mas inobstantemente certo, é afirmar que o apelo ao bom-senso sempre foi um sensato recurso. Mas, como a única coisa neste mundo que não muda é a mudança , o próprio bom-senso também sofre suas variações, podendo, então, nos trair. Os valores mudam.

Mudando-se os valores, muda-se a sociedade, muda-se o direito. Desta forma, de acordo com a freqüência das mutações axiológico-normativas, percebemos, então, o aludido ‘tom de verdade’. A incerteza torna apaixonante o direito na medida em que nos revela a sua riqueza de possibilidades.

Muito se tem falado a respeito da crise do Direito, dos paradigmas jurídicos. As transformações sociais contemporâneas forçam as espessas paredes do método lógico-dedutivo. Abrem-se fissuras. Forma-se a crise. Vemos, agora, na Tópica uma boa saída metodológica para o direito.

Falamos de transformações, mudanças. Tais forças operam em diversos sentidos na relação direito-sociedade. Se por um lado o direito é mudado, por outro muda. Um bom exemplo disto pode ser tomado das recentes políticas de ações afirmativas, escoradas pelo nosso ordenamento.

O direito é um instrumento. Instrumento de controle e pacificação social. E, como tal, deve sempre estar apto a atender as suas finalidades. Não pode ser anacrônico, sob pena de tornar-se ineficaz pela falta de efetividade, ou injusto pela sua imposição. Deve ser dinâmico porque a sociedade é dinâmica. As fontes jurídicas são continuamente alimentadas por fatores sociais, culturais, políticos e etc. Havendo alterações em um destes fatores, é natural que haja a atualização do direito, ainda que em um tempo geralmente deferido. Como bem ensina o mestre Machado Neto, “(...) como esses fatores estão em permanente mudança e inter-relação, a tarefa que a ordem jurídica exerce no regular os interesses em choque não é nunca uma tarefa conclusa, mas sempre ‘a fieri’. ”

Assim, o direito apresenta-se como um meio de elaboração constante: elabora para mudar e é elaborado pelas mudanças. Sua construção nunca poderá ser concluída integralmente.


2. Rupturas semânticas nos conceitos de família e propriedade;

O direito também não poderia deixar de trazer consigo uma considerável soma de termos de significações próprias, como acontece com as demais ciências. Contudo, das que há, está entre as mais fundamentalmente ligadas com Linguagem. É o cotidiano que abastece a energia dos seus conceitos.

E, como bem ensina a lógica, conceitos são representações mentais das coisas. Na medida em que há alterações ou rupturas semânticas nos seus elementos de extensão e compreensão, o próprio conceito vai assumindo diferentes matizes no seu significado primitivo.

A propósito, no mérito do objeto deste estudo, passemos a verificar as alterações semânticas nos conceitos de família e propriedade.

2.1. Da família;

Tal qual a nobreza de um tecido, como a seda, é-nos demonstrada pela sua tessitura, a nobreza do discurso jurídico é-nos revelada pela costura de argumentos verossímeis e coerentes, alinhavados pelo conhecimento interdisplicinar. Daí a pertinente repugnância dos bons juristas ao “panjuridiquismo” de alguns, que tentam buscar em todos os fenômenos sociais uma fundamentação sob o ângulo do Direito.

O conceito jurídico de família, “conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade” , atualmente se confunde com a expressão constitucional “entidade familiar” (art. 226, § 4.º, CF/88), que é mais ampla, “onde se computam todos os membros de uma mesma família, mesmo daquelas que se estabeleçam pelos filhos, após a morte dos pais.” Como o Estado a considera basilar à sociedade, a ela dispensa, então, proteção especial (art. 226, caput, CF/88). Também fornece mais nitidez ao seu sentido o Estatuto da Criança e do Adolescente, quando define família natural (art. 25), e trata da família substituta (arts. 28-32).

Entretanto, devemos nos lembrar que ‘família’ não é um conceito apenas jurídico. É antropológico, sociológico, teológico, enfim, um conceito interdisciplinar. Quando a sociedade evolui, seja estrutural ou conjunturalmente, o direito de família também deve evoluir.

Não é preciso ser um esperto na arte de Breal, para perceber a evolução semântica de ‘família’. Basta algum rudimentar conhecimento histórico.

Na antiguidade clássica, a família assumia o papel de um verdadeiro microestado. Como, além da sua essência procriativa, protetiva e providencial, tinha funções religiosas, produtivas e militares, o seu chefe exercia, então, papéis de sacerdote, administrador e comandante, além dos de reprodutor e protetor e provedor. Em Roma, a figura do paterfamilias gozava de especial status e poder. – Poder até mesmo de vida e morte sobre os seus dependentes. Hoje em dia, este conceito chega-nos ser fantástico, mitológico, de tão estranho a nossa realidade. A família hodierna é muito mais fundada nos valores de afetividade que nos de conveniência.

Pensamos ser enfadonha e dispensável uma análise comparativa da evolução histórica da instituição familiar. Basta lembrarmos que, conforme houve mudanças nos fatores sociais, como nos sistemas produtivos (servidão-feudalismo-mercantilismo-captalismo-socialismo), haverá alterações na estrutura e organização da família.

Atualmente, o direito positivo brasileiro vem tentando se ajustar aos matizes do novo conceito de família. A questão da união homoafetitiva e a possibilidade de adoção, dentre outras, exige um tratamento jurídico à altura de sua relevância social. O direito laico e científico, com escopo no ideal regulativo da justiça, deve se sobrepor àquele impregnado de valores religiosos de antanho, como ocorrera na feitura do Código Civil de 1916.

2.2. Da propriedade;

O vocábulo ‘propriedade’ vem do latim proprietas, de proprius, designando genericamente “qualidade que é inseparável de uma coisa, ou que a ela pertence em caráter permanente.” Assim, com o uso, passou de adjetivo a substantivo, significando o próprio bem ou coisa pertencente a alguém. No campo jurídico, há milênios significa “o poder absoluto e exclusivo que, em caráter permanente, se tem sobre a coisa que nos pertence.”

Desde o Direito Romano, o caráter de absoluto foi elemento essencial do conceito de propriedade. Ao dominus não havia restrições ao direito de usar, fruir, gozar e dispor de seu bem. Todavia, com a evolução histórica do conceito de bem comum, e com o fortalecimento do Estado e seu poder de ingerência sobre as liberdades individuais, o conceito de propriedade sofreu rupturas decisivas no seu significado. Já, o elemento ‘absoluto’, outrora essencial ao conceito, não pode mais ser tratado de igual forma.

Com o progresso, também vieram as mazelas da desigualdade social, e do mau uso da propriedade. Necessária foi a busca de soluções jurídicas para a solução dos problemas decorrentes do descompasso entre um sistema legal fundado em valores tradicionalíssimos e uma sociedade cada vez mais dinâmica e conflituosa. Assim, desenvolvido foi o conceito de função social da propriedade.

Este conceito não é tão novo. Na Carta Encíclica Rerum Novarum, de 1891, o Papa Leão XIII já comentava sobre a necessidade de se observar a função social da propriedade. Passados quarenta anos, Pio XI, na Encíclica Quadragesimo Anno, tratando sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social, volta a comentar o assunto, ainda que de modo mais liberal, em virtude da então “ameaça comunista”.

O direito constitucional brasileiro consagra o princípio da função social da propriedade. Está na norma inscrita no art. 5.º, XXIII, da Carta da República, de 1988 . E, como ensina o mestre José Afonso da Silva,

“O princípio vai além do ensinamento da Igreja, segundo o qual ‘sobre toda a propriedade particular pesa uma hipoteca social’, mas tendente a uma simples vinculação obrigacional. Ele transforma a propriedade capitalista, sem socializá-la.”

Não há como escapar ao sentido da função social. A própria Constituição autoriza medidas coercitivas, como a desapropriação (art. 182, § 4.º, e 184), contra a sua inobservância.

Apenas em tom de arremate, não podemos descuidar que, ao falarmos em família e propriedade, devemos ponderar sobre os valores sociais moldados pelo tempo, observada a sua contextualização histórica. Se, por um lado, com o passar dos tempos, orações como ‘Esta é minha família’ e ‘Esta é minha propriedade’ não sofreram alterações no campo sintático, o mesmo não se pode afirmar quanto ao campo semântico.


3. A constitucionalização do direito civil e a importância das clausulas gerais para a dinâmica social;

O Código Civil é a constituição do homem comum. Disciplina as relações jurídicas comuns, de natureza privada. Tem como características a historicidade, pois é de formação histórica, de formação contínua e graduada (produto cultural), e a estabilidade, pois, dentre os demais ramos do direito, o Direito Civil é o que menos varia ao sabor dos fatores políticos e ideológicos. Verdadeiros monumentos jurídicos, como o code civil napoleônico ou o BGB alemão foram erigidos em homenagem à sua importância.

Contudo, o Direito Civil contemporâneo está passando por uma nova fase e configuração. Como sustenta o prof. Francisco Amaral,

“O direito civil contemporâneo atravessa uma fase de transformação nos seus valores e nos seus aspectos formais e materiais, perdendo a nitidez e a clareza da sua construção inicial e gerando as incertezas que marcam a chamada crise do direito.”

Uma das tendências verificáveis no novo Direito Civil é a sua constitucionalização. As matérias antes tratadas nos códigos passaram a fazer parte das constituições. Claro que, sendo mundial esta tendência, não poderia deixar de ocorrer em nosso ordenamento jurídico. Se uns falam em ‘constitucionalização do direito civil’ outros falam em ‘civilização do direito constitucional’.

O fato é que a constituição de 1988 trouxe para o seu bojo institutos do Direito Civil. Certamente, assim o fez para conferir ainda maior segurança e estabilidade àqueles, uma vez que a norma constitucional goza de supremacia hierárquica sobre as demais, e sua revogação depende de um esforço legislativo muito maior, em comparação às leis ordinárias. Como os mais importantes institutos civis estão garantidos por cláusulas pétreas constitucionais, o fenômeno da constitucionalização é extremamente interessante ao direito civil.

Mas, ao elevarmos as normas diretivas da vida privada ao status de constitucionais, corremos o risco do “engessamento do Direito Civil” e do “Casuísmo do Direito Constitucional”. Assim, este processo de constitucionalização deve ser bem visto, mas com o rigor científico que a Dogmática exige.

Desta forma, as clausulas de natureza civil recepcionadas pela Constituição, a fim de não causarem o aludido ‘engessamento’ do direito privado, devem ser gerais, abertas, isto é, flexíveis ao inevitável progresso dos conceitos. Devem ter a natureza principiológica, exercendo sobre o Ordenamento uma função sistematizadora. Ora, o conceito de ‘sistema’ engloba os de coerênciae e organicidade. Assim, as ‘normas-princípio’ devem trazer no seu preceito palavras standard, ou seja, abertas às variações conceituais, de modo a não comprometer a sua estrutura. Deste modo, a Constituição, não descendo ao casuísmo, permite a adaptação do seu texto às mudanças da sociedade.

No mérito do presente trabalho, vale citar duas normas constitucionais que traduzem o acima exposto, no que se refere a família e propriedade Parece que o legislador constituinte compreendeu esta imposição do bom senso:


“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.”

“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no pais a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”


Quando o legislador garante proteção estatal à família, não se preocupa em definir o seu conceito. Assim, a norma é aberta, genérica. Caso a jurisprudência venha confirmar a natureza familiar da união homossexual com filhos adotados, certamente, por tratar-se de norma garantidora, que permite uma interpretação extensiva, o preceito constitucional poderá assim ser estendido ao caso em tela.

A Carta Magna vigente garante o direito de propriedade, mas o delimita em seus contornos. Todavia, não define, não ‘engessa’ o que vem a ser considerado como função social. Assim, este princípio poderá ser sempre aplicado, ainda que, no futuro, tenha conteúdo totalmente adverso ao atual.

Vale trazer, em forma de comento, que a própria ‘tábua axiológica fundamental’, consubstanciada em norma no caput do art. 5.º da nossa Constituição é uma cláusula aberta, já que não define liberdade, justiça, segurança, etc.

4. Considerações finais

No presente trabalho tratamos da importância das cláusulas gerais do direito civil constitucional brasileiro face às rupturas semânticas nos conceitos de família e propriedade. Para tanto, em primeiro lugar, tratamos de ponderar sobre a mutabilidade do Direito ante as transformações sociais. Discorremos, ainda que superficialmente, sobre seu papel instrumental como mecanismo de controle e a necessidade de manter-se sempre atualizado como a realidade social. Passamos, então, a argumentar a respeito das alterações de ordem semântica nos conceitos de família e propriedade. Prosseguindo, após sucintos comentários sobre as novas tendências do Direito Civil contemporâneo, falamos da importância da constitucionalização do Direito Civil.

À guisa de conclusão, defendemos que as ‘clausulas abertas’ de Direito Civil Constitucional exercem um papel de considerável importância para a dinâmica social. Ao permitirem o ajuste do direito positivo às transformações socioculturais, conferem ao ordenamento jurídico tons de sistema aberto e móvel. Assim, o discurso jurídico pode avançar sobre as vicissitudes, sobre as transformações da vida em sociedade, afinado com a realidade do caso concreto. Assim, para que sempre se mantenha sua afinação com o real, o operador do direito deve sempre estar atento às variações conceituais das coisas.

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5. Referências bibliográficas


AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Trad. Jonas C. Leite; Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975.

MACHADO NETO, Antônio Luiz. Sociologia Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1974.

MIRANDA, Pontes. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Pimenta de Mello & C., 1928.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas. 10. ed. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 1998.